domingo, 18 de novembro de 2018




"Cabeceira"

"Intratável. / Não quero mais pôr poemas no papel / nem dar a conhecer minha ternura. / Faço ar de dura, / muito sóbria e dura, / não pergunto / 'da sombra daquele beijo / que farei' / É inútil / ficar à escuta / ou manobrar a luta / da adivinhação. / Dito isto / o livro de cabeceira cai no chão. / Tua mão que desliza / distraidamente? / sobre a minha mão"



"Nada, esta espuma"

"Por afrontamento do desejo / insisto na maldade de escrever / mas não sei se a deusa sobe à superfície / ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco / quero tanto os seios da sereia."



"Que desliza"

"Onde seus olhos estão / as lupas desistem. / O túnel corre, interminável / pouso negro sem quebra / de estações. / Os passageiros nada adivinham. / Deixam correr / Não ficam negros / Deslizam na borracha / carinho discreto / pelo cansaço / que apenas se recosta / contra a transparente / escuridão."




"Sábado de aleluia"

"Escuta, Judas. / Antes que você parta pro teu baile. / A morte nos absorve inteiramente. / Tudo é aconchego árido. / Cheiro eterno de Proderm. / Mesa posta, e as garras da vontade. / A gana de procurar um por um / e pronunciar o escândalo. / Falar sem ser ouvida. / Desfraldar pendengas: te desejo. / Indiferença fanática ao ainda não."




"O último adeus I"
"Os navios fazem figuras no ar / escapam as cores - os faunos. / Os corpos dos bombeiros bailam / no brilho dos meus pés. / Do cais mordo / impaciente / a mão imersa / nos faróis."

A autora desses poemas se suicidou em 29 de outubro de 1983, se jogando do sétimo andar do apartamento de seus pais, na rua Toneleiros, Copacabana - Rio de Janeiro.


Ana Cristina


Ana Cristina Cesar era da chamada "Geração Mimeógrafo" , era uma das expoentes da "poesia marginal.

Nasceu no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1952, filha do sociólogo e jornalista Waldo Aranha Lenz Cesar (fundador da Editora Paz e Terra) e de Maria Luiza Cruz, Ana Cristina nasceu em uma família culta e protestante de classe média. Aos seis anos, ainda não alfabetizada, já lia poesias para sua mãe.




Em 1969, Ana Cristina Cesar viajou à Inglaterra em intercâmbio e passou um período em Londres, onde travou contato com a literatura em língua inglesa. Quando regressou ao Brasil, com livros de Emily Dickinson, Sylvia Plath e Katherine Mansfield nas malas, dedicou-se a escrever e a traduzir, entrando para a Faculdade de Letras da Pontifícia Un iversidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), aos dezenove anos.

Cesar começou a publicar poemas e textos de prosa poética na década de 1970 em coletâneas, revistas e jornais alternativos. Seus primeiros livros, Cenas de Abril e Correspondência Completa, foram lançados em edições independentes. As atividades de Ana Cristina não pararam: pesquisa literária, mestrado em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), outra temporada na Inglaterra para um mestrado em tradução literária (na Universidade de Essex), em 1980,  e a volta ao Rio, onde publicou Luvas de Pelica, escrito na Inglaterra. Em suas obras, Ana Cristina Cesar mantém uma fina linha entre o ficcional e o autobiográfico.




Ana Cristina, ou Ana C., como é mais conhecida, não deixou bilhete de despedida. Deixou poesias. Sabe-se pouco dos motivos que a levaram ao suicídio. Ela recém voltara de Londres, estava deprimida, tentara matar-se dias antes afogando-se no mar, em episódio mal descrito pelos biógrafos, até chegar ao ato final no apartamento dos pais. Enquanto sua literatura desenha uma rarefeita fronteira entre o ficcional e o autobiográfico, suas fotos mostram uma moça muito sorridente. Quem conheceu Ana, fala de uma pessoa de poucas palavras, mas de expressão clara, cristalina. Heloísa Buarque de Hollanda foi uma das primeiras ensaístas a reconhecer o valor de seus trabalhos, “eles possuem um traço diferente, extremamente pessoal, que não dá para classificar de modo nenhum como marginália ou algo parecido”.



Noite de Natal

Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça.
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera

Seus leitores procuram textos que se relacionem com seu suicídio, afinal é muito difícil aceitar o suicídio. Mas qualquer certeza a esse respeito é fantasia. Ana desenvolveu alguns de seus melhores trabalhos ao traduzir as poesias de Sylvia Plath (1932-1963), outra poetisa, outra suicida. Um destino muito igual numa idade muito igual o dessas duas mulheres que não conseguiram viver, mas expressaram sua dor da forma mais pura possível.



Armando Freitas Filho, poeta brasileiro, foi o melhor amigo de Ana Cristina Cesar, para quem ela deixou a responsabilidade de cuidar postumamente das suas publicações. O acervo pessoal da autora está sob tutela do Instituto Moreira Salles. A família fez a doação mediante a promessa de os escritos ficarem no Rio de Janeiro. Contudo, sabe-se que muitas cartas de Ana Cristina Cesar foram censuradas pela família, principalmente as recebidas do escritor Caio Fernando Abreu.

Caio Fernando e Ana Cintra tiveram um romance, segundo o escritor foi amor à primeira vista, quando se conheceram no lançamento do livro dela "A teus pés" em 1982.



Rio de Janeiro, 17 de novembro de 1982


Te escrevo, Caio querido, com teu telefonema ainda quente, deixo Proust de lado e a burocracia editorial da lista de nomes e endereços e ceps, que me consola como um álbum de figurinhas. Ando gemebunda. Aguardo bem o livro,  mas com aflição do número imprensa e dos falsos elogios dos amigos. Lançamento vai ser num lugar ideal, o que para mim significa: a dois metros de casa, nem saio da Baixa Gávea. Detestei fazer a tal biografia, redigi durante dias tentando não fazer número nenhum, atingir uma espécie de grau zero qualquer. Vã. Tomo decisões que não sei se cumpro: levantar cedo, fazer exercícios na praia; ler os clássicos; arrumar a casa. Tudo bem ao chão porque disseram que sou toda ar com o trio gêmeos/leão/libra (por ato falho escrevi “virgo”). Fiz o mapa. Lê pra mim? O astrólogo achei vago, geral demais, muito do perguntador, o que tirava o charme dos adivinhadores e fazia dele, embora americano tranquilo, um sacador de pistas que eu mesma dava. E tudo tão caro! Olha, meu corpo todo dói.

O amor… Nos amamos loucamente porém enrascadas em psicanálise (pode?) e no “mulher com mulher”. Acaba quase todo dia. Não sei direito (tem que?) entrar para colônia gay, mas desejo mais escracho, mais verão sim, e entro numa pedagogia da desopressão que vira um papel. Precisaria ficar simplesmente mais quieta. Mas o que esse caso tem me virado… Não sei como, recuperando uma espécie de dom da sobriedade. Quando acaba fico grave, meio empertigada, com projetos muito ao chão; quando recomeça palpito, me sobressalto, tenho medo e eloquência. Há sim uma emperração fundamental que volta e meia. Cosa devo fare?

Isto aqui parece um bilhete desses de escola, passado por baixo da carteira. Como é que bruxas voam? Adoro te ouvir dizendo do projeto imenso e secreto. Sabe que também acalento a sombra de um poema inteiro interminável tipo William Carlos Williams? Às vezes acrescento um mote. Charles, até Chacal andam alongando seus versos. Waly Salomão, na homenagem a Torquato [Neto], leu um belo longo bem beat. Queria que ele só lesse. De 15 em 15 dias sou hostess, com a Grajina (“a dama de Gdansk”, segundo o Waly), no Barbas, de noites de leitura de poesia. Tem dado certo, semana que vem leio eu entre outros, mas no geral nenhuma mundanidade me atrai. Só fui a uma festa do PT e ao aniversário da Clare (você conhece?) onde quis tanto escrachar que ficou de propósito demais. Arre, só falo em mim. Vê se acha a Folha com o Loyola te lendo. Alguns livros sobre a mesa que atualmente, no vendaval, só folheio: o peruano César Vallejo, o português Carlos de Oliveira, o paulista [Roberto] Piva, o fundamental Rimbaud, e, à espera, Conrad de Heart of Darkness. Mas cadê que eu paro? Ai que desejo de grande ordem, nem que fosse ao preço da certa aridez. Mas o amor…

Te beijo,

Ana C.



Nos seus parcos 31 anos de vida, ela os viveu intensamente, e deixou uma obra alinhada ao dia a dia do poeta marginal e sem amarras culturais ou sociais.


Fontes:
wikipedia;org
correioims.com.br/carta/mas-o-amor
sul21.com.br/noticias/2012/06/ana-cristina-cesar-aos-60/
oglobo.globo.com/cultura/livros/cinco-
google.com.br

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