segunda-feira, 3 de maio de 2021

Vamos falar hoje do conto "A imitação da rosa" da escritora Clarice Lispector, um conto do livro "Laços de família".


Clarice Lispector


"Antes que Armando voltasse do trabalho a casa deveria estar arrumada e ela própria já no vestido marrom para que pudesse atender o marido enquanto ele se vestia, e então sairiam com calma, de braço dado como antigamente. Há quanto tempo não faziam isso?
Mas agora que ela estava de novo "bem", tomariam o ônibus, ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele, e depois jantariam com Carlota e João, recostados na cadeira com intimidade. Há quanto tempo não via Ar­mando enfim se recostar com intimidade e conversar com um homem? A paz de um homem era, esquecido de sua mulher, conversar com outro homem sobre o que saía nos jornais. Enquanto isso ela falaria com Carlota sobre coisas de mulheres, submissa à bondade autoritária e prática de Carlota, recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural, e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à insignificância com reconhecimento. Como um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido, encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando. As pessoas felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava "bem". Sem a fitarem, ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias o esqueci­mento como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe. Há quanto tempo não via Armando enfim se recostar com abandono, esquecido dela? E ela mesma?"




No conto A Imitação da Rosa, Laura é uma dona de casa, à primeira vista comum. Aos poucos, nas entrelinhas da narrativa, subtende-se que acaba de retornar de uma temporada internada em um sanatório. Ela espera o marido Armando chegar do trabalho para que juntos se dirijam à casa de Carlota, uma amiga de infância, pela primeira vez desde que voltara do hospital. Para manter a cabeça no lugar, Laura tem a intenção de deixar a casa impecavelmente arrumada, perfeita como ela precisava ser, evitando dar qualquer sentido aos objetos que a rodeavam.

Tudo do cotidiano das coisas, agora lhe dava prazer e ao mesmo tempo não tinham grande significado. A rotina era uma forma que ela usava para sobrepujar sua enfermidade. Ficava feliz em ver como as pessoas já olhavam para ela como se não estivesse ali, ao mesmo tempo se sentindo importante de estar.






Tudo na vida dela segue um método desde que voltara do hospital. É como se deixando tudo organizado do lado de fora, Laura conseguisse imprimir um pouco de ordem ao que está dentro. Então segue as ordens do médico e toma um copo de leite todos os dias em determinado horário, mesmo que esteja sem vontade, para evitar algum sintoma de ansiedade. Porém, ao mesmo tempo, o médico lhe diz para não se preocupar tanto e deixar as coisas acontecerem naturalmente.



S obre a vida conjugal com Armando ela dizia:


"Às vezes ele era muito sem-vergonha, ninguém diria. Car­lota ficaria espantada se soubesse que eles também tinham vida íntima e coisas a não contar, mas ela não contaria, era uma pena não poder contar, Carlota na certa pensava que ela era apenas ordeira e comum e um pouco chata, e se ela era obrigada a tomar cuidado para não importunar os outros com detalhes, com Armando ela às vezes relaxava e era cha­tinha, o que não tinha importância porque ele fingia que ouvia mas não ouvia tudo o que ela lhe contava, o que não a magoava, ela compreendia perfeitamente bem que suas conversas cansavam um pouquinho uma pessoa, mas era bom poder lhe contar que não encontrara carne mesmo que Armando balançasse a cabeça e não ouvisse, a empre­gada e ela conversavam muito, na verdade mais ela mesma que a empregada, e ela também tomava cuidado para não cacetear a empregada que às vezes continha a impaciência e ficava um pouco malcriada, a culpa era mesmo sua porque nem sempre ela se fazia respeitar."


....

"Sempre achara lindo uma sala de espera, tão respeitoso, tão impessoal. Como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o.
— Ah como são lindas, exclamou seu coração de repen­te um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, em parte porque o homem insistira tanto, em parte por ousadia. Arrumara-as no jarro de manhã mesmo, enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas."

Fica espantada diante da beleza e perfeição das rosas, que não tinha observado anteriormente. Ela pensa então que, já que as rosas são tão bonitas, deve levá-las para Carlota, em agradecimento ao jantar. Mas por que entregá-las, se elas são tão bonitas, ela também não tem o direito a algo belo em sua vida? Esse é o grande dilema de Laura. Ela decide então que Maria, sua empregada, deve levá-las para Carlota antes que ela e o marido fossem ao jantar. Maria arranca as rosas das mãos dela, não deixando nem uma pétala a qual Laura pudesse se agarrar. Quando Armando abre a porta, encontra a casa no mais completo silêncio. Ao acender a luz, se depara com Laura vidrada, olhando para o local onde outrora estiveram as rosas e repetindo: “Voltou, Armando. Voltou… Não pude impedir. Voltou”. As rosas tinham ido embora e a desordem não resolvida havia retornado. O conflito se instaura no momento em que Laura se dá conta da existência do ramalhete de rosas. A fragilidade é trespassada pela imagem da perfeição da flor no momento da epifania, habitual no texto de Clarice.






No caso narrado em A Imitação da Rosa, Laura tenta a princípio negar a realidade de seu conflito através de uma rotina padronizada. Mas a equação gera dividendos acima do que ela é capaz de suportar. O conflito entre as forças que pulsam antagônicas e  se manifestam quando Laura se depara com a rosa. É como se a flor a desafiasse, funcionando como um espelho para a situação em que se encontra. Não por acaso a rosa é colocada como um símbolo que representa o ideal de mulher que Laura pretende ser. Ao mesmo tempo, sua sexualidade não existe, ela é apenas mais um móvel entre os vários que existem na casa. Ela pretende não se importar com a aparência, porque o que interessa é não estar desequilibrada. Mas a rosa está ali, olhando e dizendo que não é verdade. A rosa com suas pétalas simetricamente perfeitas, sem manchas, como Laura gostaria de ser, se pudesse apagar o passado em que perdeu o juízo. O ramalhete que ela não pode entregar a Carlota, porque se desfazer das rosas seria a mesma coisa que entregar os pontos e dizer que pretende continuar naquela vida medíocre da qual não se sente participante. E ela se prende a esse detalhe até o último instante.




De acordo com a psicanálise, o corpo é vivenciado pelo psiquismo como uma extensão dele. O corpo é revestido pela pulsão e consequentemente, pela sexualidade o que traz a presença de um corpo erógeno, que deve ser interpretado, desejado e fonte de prazer para o psiquismo. Quando Laura nega esse desejo do seu psiquismo em utilizar o seu corpo para vivenciar o mundo com prazer, sua mente cobra o preço por essa barreira. Diante da beleza da rosa, começa a se questionar que lugar ocupa, onde está seu desejo, perguntas que tentou abafar a todo custo sucumbindo a uma rotina de dona de casa. São questões inconscientes que ultrapassaram o obstáculo imposto pelo ego e que provocam uma ruptura.

"E Carlota se surpreen­deria com a delicadeza de sentimentos de Laura, ninguém imaginaria que Laura tivesse também suas ideiazinhas. Nesta cena imaginária e aprazível que a fazia sorrir beata, ela cha­mava a si mesma de "Laura", como a uma terceira pessoa. Uma terceira pessoa cheia daquela fé suave e crepitante e grata e tranquila, Laura, a da golinha de renda verdadeira, vestida com discrição, esposa de Armando, enfim um Ar­mando que não precisava mais se forçar a prestar atenção em todas as suas conversas sobre empregada e carne, que não precisava mais pensar na sua mulher, como um homem que é feliz, como um homem que não é casado com uma bailarina."



Carlota era como um alter ego de Laura, ela sentia-se bem em imaginar que agradara à amiga, embora, no seu íntimo achasse que a amiga a desprezava. Afinal ela era uma mulher que nem filhos podia gerar. As rosas que eram efetivamente dela, representam um bem que de impulso ela abrira mão doando-as para a amiga.





Ao imitar a rosa, Laura imagina-se dando flores, lindas flores, a partir dos botões, ao mesmo tempo se defende com os espinhos que ajudam a não ter grandes exposições além da beleza e do perfume da própria rosa. Afinal quem gosta de rosas deve suportar os espinhos

Laura habita em uma prisão onde o seu principal algoz é ela mesma em busca de uma perfeição inalcançável. Esconde seus questionamentos em meio aos afazeres cotidianos, se abstém em prol da criação dos filhos, na tentativa de ser uma “mulher ideal”. A tentativa de sanar de uma forma rápida e indolor o que está sentindo não impede que em um determinado momento o conflito retorne mais forte, mais decidido a ser solucionado. 



E as rosas faziam-lhe falta. Haviam deixado um lugar claro dentro dela. Tira-se de uma mesa limpa um objeto e pela marca mais limpa que ficou então se vê que ao redor havia poeira. As rosas haviam deixado um lugar sem poeira e sem sono dentro dela. No seu coração, aquela rosa, que ao menos poderia ter tirado para si sem prejudicar nin­guém no mundo, faltava. Como uma falta maior.
Na verdade, como a falta. Uma ausência que entrava nela como uma claridade. E também ao redor da marca das rosas a poeira ia desaparecendo. O centro da fadiga se abria em círculo que se alargava. Como se ela não tivesse passado nenhuma camisa de Armando. E na clareira as rosas faziam falta. "Cadê minhas rosas", queixou-se sem dor alisando as preguinhas da saia.


A Imitação da Rosa é um conto de passagem de estados, de um estágio lacunar do estado “bem”, onde os conteúdos estão confusos e díspares. E como no barco renascentista Laura é prisioneira da passagem, contudo, ela conhece sua chegada e partida. As figuras da loucura, as imagens esparsas de um passado, ajudam-na a dar valor a este estado “bem” e falível. Falível, pois o único bem de Laura está na falta, está em seu isolamento brilhante, sua loucura a incomoda, ser neurótica também, mas é o único lugar onde ela pode ser ela mesma, onde o mundo sensível lhe chega. Ser louco é apenas uma forma de ver o mundo e esta é a melhor forma para Laura, ainda que seus signos-mestres, digam que não, sua existência vital diz que sim. ¹


¹ - revista anagrama - Martins_lispector - a imitação do silêncio - p.15




Fontes:
derivaderiva.com
wikopedia.org
google.com
claricelispector.blogspot.com
martins_lispector - a imitação do silêncio

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