sexta-feira, 16 de julho de 2021



"Examinou o terreiro, viu Baleia coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se pôs a latir desesperadamente.

Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto. Fabiano recolheu-se.

E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.

Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.

Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.

Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.

Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (…)

Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera.

Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.

Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.

Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades. Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde sinha Vitória guardava o cachimbo. (…)

Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes."


Acima um dos capítulos mais tristes da Literatura Brasileira, Vidas Secas de Graciliano Ramos, a morte da Baleia. 


A Baleia é a cadela que curiosamente tem um nome, e faz referência a um animal aquático, ou seja, uma baleia, em contraste com a seca. Ela é muito adorada pelos meninos e no decorrer da história adoece e por fim, morre. Interessante notar que a baleia é considerada um ser humano.



“Vidas Secas“, romance publicado em 1938, retrata a vida miserável de uma família de retirantes sertanejos obrigada a se deslocar de tempos em tempos para áreas menos castigadas pela seca. A obra pertence à segunda fase modernista, conhecida como regionalista, e é qualificada como uma das mais bem-sucedidas criações da época.



Graciliano Ramos (1892-1953) foi um escritor brasileiro. O romance "Vidas Secas" foi sua obra de maior destaque. É considerado o melhor ficcionista do Modernismo e o prosador mais importante da Segunda Fase do Modernismo.

Suas obras embora tratem de problemas sociais do Nordeste brasileiro, apresentam uma visão crítica das relações humanas, que as tornam de interesse universal.

Seus livros foram traduzidos para vários países e Vidas Secas, São Bernardo e Memórias do Cárcere, foram levados para o cinema. Recebeu o Prêmio da Fundação William Faulkner, dos Estados Unidos, pela obra "Vidas Secas".

A obra é narrada em terceira pessoa e conta a saga da família de Fabiano, um retirante da seca que busca condições de vida mais dignas para ele e sua família.




Vidas Secas é um profundo retrato da sociedade brasileira, sobretudo de seus problemas sociais.

Dessa forma, Graciliano traça uma crítica social retratando as dificuldades encontradas por uma família pobre de retirantes. Eles tem de conviver constantemente com a miséria e a seca que assola o sertão nordestino.

Fabiano e Sinhá Vitória é um casal simples que possuem dois filhos: o mais novo e o mais velho. Dos filhos, nenhum nome é mencionado durante toda a estória. Mesmo convivendo constantemente com a miséria, ele são crianças que possuem sonhos. O mais velho é muito curioso, e o mais novo anseia por fazer algo importante, para que todos fiquem orgulhoso dele.



Vale lembrar que a obra muitas vezes não possui diálogos. Fabiano, deveras ignorante, tem dificuldade de se expressar e prefere ficar quieto. Sua mulher, Sinhá Vitória, é uma lutadora que busca melhorar a situação, sendo menos ignorante que seu marido, que a admira muito.

Quando a família encontra um lugar para descansar do sol escaldante, se deparam com o dono da terra, que será o patrão de Fabiano.

Ele permanece no local com sua família, trabalhado como vaqueiro na fazenda. Fabiano é preso injustamente pelo soldado amarelo, momento em que reflete sobre sua vida e sua condição.

O romance é repleto de pequenas felicidades dentro da família de retirantes. No entanto, os problemas sociais e animalização das personagens permeiam toda obra.





Além disso, o sonho do sofrimento acabar, permanece em todos, na esperança de encontrar melhores oportunidades.

Note que o último capítulo “Fuga” aponta que a seca vem novamente assolar a região, com o verão que se aproxima. Assim, se inicia uma nova fuga sendo a mesma do início: a fuga da seca.

O drama retrata grande parte da sociedade esquecida nos sertões do Brasil, que lutam todos os dias pela sobrevivência e pela água, fonte de vida e conforto. 




O problema da falta d´água no Nordeste brasileiros sempre esteve ao lado dos grandes latifundiários que lucram com a miséria dos retirantes.

No período de 2003 até 2014, algumas ações governamentais foram feitas, como açudes, caçambas e a transposição do Rio São Francisco, para minimizar o sofrimento daqueles brasileiros.


Fontes:
guiadoestudante.abril.com.br
todamateria.com.br
google.com
todaprosa.com.br
ebiografia.com





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