segunda-feira, 7 de junho de 2021

A Obra de Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada, completa 100 anos em 2022.


Poesias completas (tenho essa edição)



Como o autor descreve, havia muito tempo que ele intentava compor um livro à maneira do Les villes tentaculaires (As cidades tentaculares), do poeta belga Émile Verhaeren (1855-1916). Mas suas tentativas, no entanto, se frustravam.

O desejo por fim se realizou quando, num dia em que adquirira a famosa escultura Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, o poeta teve de enfrentar a injúria e a incompreensão da família, solidamente católica, diante de uma obra que ousava representar Jesus com tranças na cabeça. Enfurecido, subiu até seu quarto, onde, pela janela, podia avistar o movimento já frenético dos carros e dos bondes.

A visão da cidade que se urbanizava rapidamente e em que a paisagem industrial ia se desenhando [Lembremos que a casa de Mário de Andrade se situava, como se situa até hoje, na rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo], mais a desordem íntima que o escritor experimentava após a discussão familiar, talvez tivessem lhe proporcionado uma percepção poética de como escrever, em português e de maneira conforme à realidade local, paulista, um livro semelhante ao de Verhaeren, que procurou traduzir em imagens poéticas a cidade moderna, “tentaculizada” pela linhas de bonde. Paulicéia Desvairada seria escrita naquela noite mesmo, de um fôlego só.


Av. S. João (Entre Correios e Ed. Martinelli)


Prefácio Interessantíssimo lança as bases estéticas do Modernismo. Inspirada na análise da cidade de São Paulo e seu provincianismo, a obra marca o rompimento definitivo do autor com todas as estruturas do passado. É do primeiro livro de poemas modernista, cuja “confecção tumultuária” Mário de Andrade descreveria muitos anos depois na famosa conferência de 1942 sobre o movimento que transformaria o panorama das artes no Brasil. Mário de Andrade definiu o livro como áspero de insulto, gargalhante de ironia, com versos de sofrimento e de revolta.



Praça do Patriarca




O Prefácio Interessantíssimo vale como verdadeiro manifesto-programa do Modernismo brasileiro, uma plataforma teórica, que será retomada e aprofundada pelo próprio Mário de Andrade em A escrava que Não é Isaura (1924). É onde expõe suas ideias a respeito de poesia e declara ter fundado o desvairismo. O texto rompe com com o Modernismo, sua estética, sua métrica enclausurada. Como disse Manuel Bandeira no seu poema "Poética" :
 
"Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.

Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo".




PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO 


"Dans mon pays de fiel et d'or j'en suis la loi”. E. (No meu país de fel e de ouro eu sou a lei) VERHAEREN 


 Leitor:

 Está fundado o Desvairismo. Este prefácio, apesar de interessante, inútil. Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de ler, já não aceitou. Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi. Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo. Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a seriedade. Nem eu sei. E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma sô vez das teorias-avós que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar orientação moderna que ainda não compreende bem. Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se, para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc. Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia... “tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso. “Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal revelador do seu destino, como os antigos profetas". Talvez digam de mim o que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco. 






O livro que é uma coletânea do grande poeta modernista e  fala sobre um Brasil em formação e seu povo. O texto mais conhecido do livro é "O prefácio interessantíssimo" que inicia a obra, mas outros poemas se destacam como "domingo".

DOMINGO


 Missas de chegar tarde, em rendas,
 e dos olhares acrobáticos. . . 
Tantos telégrafos sem fio! 
Santa Cecilia regurgita de corpos lavado
 e de sacrilégios picturais ...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no "Confiteor". .. Contrastar! 
- Futilidade, civilização ... 
Hoje quem joga? .. O Paulistano¹. 
Para o Jardim América das rosas e dos pontapés Friedenreich²  fez goal! 
Comer! Que juiz! 
Gostar de Blanco? Adoro.
Qual Bartõ ... E o meu xará maravilhoso! .
 - Futilidade, civilização ...

Igreja de Santa Cecília

O livro conta a história de uma São Paulo do início do século XX que já dava mostra de sua pujança, apesar de seus ares interioranos que imperavam em alguns locais. Mostra a sua gente, sua miscigenação e suas diversas  culturas.
    

O cortejo


Monotonias das minhas retinas…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…
Todos os sempres das minhas visões! “Bom giorno, caro.”


Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades…
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia – a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção…
Giram homens fracos, baixos, magros…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…

Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,

Parecem-me uns macacos, uns macacos.




Casa de Mário de Andrade - Rua Lopes Chaves - Barra Funda São Paulo




¹- Clube Atlético Paulistano - clube de futebol amador várias vezes campeão paulista

² - Friedenreich - famoso jogador de futebol da época do amadorismo.




Fontes:
folha.uol.com.br
iedamagri.files.wordpress.com
pinterest.com
google.com
passeiweb.com
letras-lyrics.com.br
pensador.com
nuhtaradahab.wordpress.com
wikipedia.org

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