A Obra de Mário de Andrade, Paulicéia Desvairada, completa 100 anos em 2022.
Poesias completas (tenho essa edição)
Como o autor descreve, havia muito tempo que ele intentava compor um livro à maneira do Les villes tentaculaires (As cidades tentaculares), do poeta belga Émile Verhaeren (1855-1916). Mas suas tentativas, no entanto, se frustravam.
O desejo por fim se realizou quando, num dia em que adquirira a famosa escultura Cabeça de Cristo, de Victor Brecheret, o poeta teve de enfrentar a injúria e a incompreensão da família, solidamente católica, diante de uma obra que ousava representar Jesus com tranças na cabeça. Enfurecido, subiu até seu quarto, onde, pela janela, podia avistar o movimento já frenético dos carros e dos bondes.
A visão da cidade que se urbanizava rapidamente e em que a paisagem industrial ia se desenhando [Lembremos que a casa de Mário de Andrade se situava, como se situa até hoje, na rua Lopes Chaves, no bairro da Barra Funda, em São Paulo], mais a desordem íntima que o escritor experimentava após a discussão familiar, talvez tivessem lhe proporcionado uma percepção poética de como escrever, em português e de maneira conforme à realidade local, paulista, um livro semelhante ao de Verhaeren, que procurou traduzir em imagens poéticas a cidade moderna, “tentaculizada” pela linhas de bonde. Paulicéia Desvairada seria escrita naquela noite mesmo, de um fôlego só.
Prefácio Interessantíssimo lança as bases estéticas do Modernismo. Inspirada na análise da cidade de São Paulo e seu provincianismo, a obra marca o rompimento definitivo do autor com todas as estruturas do passado. É do primeiro livro de poemas modernista, cuja “confecção tumultuária” Mário de Andrade descreveria muitos anos depois na famosa conferência de 1942 sobre o movimento que transformaria o panorama das artes no Brasil. Mário de Andrade definiu o livro como áspero de insulto, gargalhante de ironia, com versos de sofrimento e de revolta.
O Prefácio Interessantíssimo vale como verdadeiro manifesto-programa do Modernismo brasileiro, uma plataforma teórica, que será retomada e aprofundada pelo próprio Mário de Andrade em A escrava que Não é Isaura (1924). É onde expõe suas ideias a respeito de poesia e declara ter fundado o desvairismo. O texto rompe com com o Modernismo, sua estética, sua métrica enclausurada. Como disse Manuel Bandeira no seu poema "Poética" :
"Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho vernáculo de um vocábulo".
PREFÁCIO INTERESSANTÍSSIMO
"Dans mon pays de fiel et d'or j'en suis la loi”.
E. (No meu país de fel e de ouro eu sou a lei) VERHAEREN
Leitor:
Está fundado o Desvairismo.
Este prefácio, apesar de interessante, inútil.
Alguns dados. Nem todos. Sem conclusões. Para quem me aceita são inúteis
ambos. Os curiosos terão prazer em descobrir minhas conclusões, confrontando
obra e dados. Para quem me rejeita trabalho perdido explicar o que, antes de
ler, já não aceitou.
Quando sinto a impulsão lírica escrevo sem pensar tudo o que meu inconsciente
me grita. Penso depois: não só para corrigir, como para justificar o que escrevi.
Daí a razão deste Prefácio Interessantíssimo.
Aliás muito difícil nesta prosa saber onde termina a blague, onde principia a
seriedade. Nem eu sei.
E desculpe-me por estar tão atrasado dos movimentos artísticos atuais. Sou
passadista, confesso. Ninguém pode se libertar duma sô vez das teorias-avós
que bebeu; e o autor deste livro seria hipócrita si pretendesse representar
orientação moderna que ainda não compreende bem.
Livro evidentemente impressionista. Ora, segundo modernos, erro grave o
Impressionismo. Os arquitetos fogem do gótico como da arte nova, filiando-se,
para além dos tempos históricos, nos volumes elementares: cubo, esfera, etc.
Os pintores desdenham Delacroix como Whistler, para se apoiarem na calma
construtiva de Rafael, de Ingres, do Greco. Na escultura Rodin é ruim, os
imaginários africanos são bons. Os músicos desprezam Debussy, genuflexos
diante da polifonia catedralesca de Palestrina e João Sebastião Bach. A poesia...
“tende a despojar o homem de todos os seus aspectos contingentes e
efêmeros, para apanhar nele a humanidade”... Sou passadista, confesso.
“Este Alcorão nada mais é que uma embrulhada de sonhos confusos e
incoerentes. Não é inspiração provinda de Deus, mas criada pelo autor. Maomé
não é profeta, é um homem que faz versos. Que se apresente com algum sinal
revelador do seu destino, como os antigos profetas". Talvez digam de mim o
que disseram do criador de Alá. Diferença cabal entre nós dois: Maomé
apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como
louco.
O livro que é uma coletânea do grande poeta modernista e fala sobre um Brasil em formação e seu povo. O texto mais conhecido do livro é "O prefácio interessantíssimo" que inicia a obra, mas outros poemas se destacam como "domingo".
DOMINGO
Missas de chegar tarde, em rendas,
e dos olhares acrobáticos. . .
Tantos telégrafos sem fio!
Santa Cecilia regurgita de corpos lavado
e de sacrilégios picturais ...
Mas Jesus Cristo nos desertos,
mas o sacerdote no "Confiteor". .. Contrastar!
- Futilidade, civilização ...
Hoje quem joga? .. O Paulistano¹.
Para o Jardim América das rosas e dos pontapés Friedenreich² fez goal!
Comer! Que juiz!
Gostar de Blanco? Adoro.
Qual Bartõ ... E o meu xará maravilhoso! .
- Futilidade, civilização ...
Igreja de Santa Cecília
O livro conta a história de uma São Paulo do início do século XX que já dava mostra de sua pujança, apesar de seus ares interioranos que imperavam em alguns locais. Mostra a sua gente, sua miscigenação e suas diversas culturas.
O cortejo
Monotonias das minhas retinas…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…
Todos os sempres das minhas visões! “Bom giorno, caro.”
Horríveis as cidades!
Vaidades e mais vaidades…
Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!
Oh! Os tumultuários das ausências!
Paulicéia – a grande boca de mil dentes;
e os jorros dentre a língua trissulca
de pus e de mais pus de distinção…
Giram homens fracos, baixos, magros…
Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…
Estes homens de São Paulo,
Todos iguais e desiguais,
Quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,
Parecem-me uns macacos, uns macacos.
Casa de Mário de Andrade - Rua Lopes Chaves - Barra Funda São Paulo
¹- Clube Atlético Paulistano - clube de futebol amador várias vezes campeão paulista
² - Friedenreich - famoso jogador de futebol da época do amadorismo.
Fontes:
folha.uol.com.br
iedamagri.files.wordpress.com
pinterest.com
google.com
passeiweb.com
letras-lyrics.com.br
pensador.com
nuhtaradahab.wordpress.com
wikipedia.org
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