Outro clássico da literatura mundial é "A religiosa" de Denis Diderot, escrita em 1760.
Denis Diderot, escritor e filósofo francês, nasceu em Langres em 8 de outubro de 1713, e morreu em Paris em 31 de julho de 1794.
Educado num colégio jesuíta, foi um aluno dedicado e brilhante, recebendo sólida educação humanística.
Suzanne Simonin é uma jovem burguesa forçada por seus pais a realizar os votos religiosos. O motivo que a leva a ser enclausurada em seu primeiro convento é, desde o início, imposto externamente: o pretendente e futuro marido de sua irmã mais velha direcionava gracejos à jovem Suzanne, a qual prontamente advertiu sua mãe sobre o despudor do rapaz . Senhora Simonin, visando garantir o casamento da filha mais velha, afasta Suzanne do ambiente familiar encaminhando-a ao convento de Sainte-Marie. Em meio a este drama familiar, dois episódios contíguos marcam a passagem da jovem religiosa em seu primeiro convento: a visão da loucura como efeito da vida claustral e a primeira recusa dos votos.
" Marie-Suzanne Simonin, prometeis dizer a verdade ?
- Prometo
- É de bom grado e de livre e espontânea vontade que estais aqui ?
- Eu disse não; mas as que me acompanhavam disseram, por mim, sim.
- Marie-Suzanne Simonin, prometeis a Deus castidae, pobreza e obediência ?
- Hesitei um momento; o padre esperava; e respondi:
Não senhor!" (A religiosa - p.47)
Além disso, devido à sua origem bastarda a mãe temia que mais tarde, Suzanne reivindicasse a herança da família.
" Tanta desumanidade, tanta obstinação por parte de meus pais acabaram por certificar-me sobre o que eu suspeitava a respeito de meu nascimento; nunca pude encontrar outro meio de escusá-los. Minha mãe temia aparentemente que eu viesse um dia a pedir a partilha dos bens..." (p.49)
Depois de professar, Suzanne recorre à Justiça para romper seus votos, perde o processo, acaba evadindo-se do convento, refugia-se em Paris, pede socorro ao marquês de Croismare, que supostamente se interessara por ela durante a ação judicial, e para ele escreve sua história, em forma de memórias.
Um argumento simples: uma religiosa sem vocação, em luta contra a sentença do destino.
Trata-se de um romance anticlerical ? Mais que isso, anticristão? O romance não prega a antirreligião, nem o anticristaníssimo, nem sequer o anticlericalismo. O alvo principal de Diderot, segundo suas próprias declarações, é a instituição do claustro. Contra os conventos, o romance sustenta duas acusações diferentes, ambas materialistas: a de serem cúmplices de uma ordem social e política iníqua e a de fundarem-se num regime que contesta a ordem da natureza. Para Diderot, a sociabilidade é o mais forte pendor da natureza humana.
Diderot chama a atenção para a obrigatoriedade da vida enclausurada e a hipocrisia entre a religião e a moral cristã.
Outra leitura mais recente, de Catherine Cusset, no romance Diderot examinaria “as relações entre o corpo, a razão e o imaginário” e redefiniria sua noção de liberdade. É por intermédio do corpo que as jovens religiosas e as superioras enlouquecem.
A essa linguagem afetiva que vem do corpo se opõe “a linguagem racional” dos personagens masculinos. O poder dos homens se exerce pela palavra regida por um código, o da justiça humana ou divina. Ora, contra “a alienação histérica” e as paixões desregradas, Suzanne alia-se à “lei”, à civil ou àquela que rege a vida monástica. Essa espécie de “ceticismo racional” a leva a resistir a todas as seduções. A instituição monástica é desumana porque contraria aquilo que Diderot chama de “a inclinação geral da natureza”, “os germes das paixões”, “a natureza” ou “a economia animal”.
Suzanne é não só uma religiosa exemplar como desconhece completamente a “economia animal”, sobretudo na última parte do livro, quando Diderot insiste em sua “inocência”. Para Cusset, não se pode explicar esse “paradoxo” com a alegação de que Diderot escolheu uma personagem pura de qualquer desejo a fim de tornar moralmente inatacável seu desejo de liberdade. Essa “incoerência” se aprofundará justamente no convento de Saint-Eutrope, quando o bem e o mal, até então claramente distinguidos, passam a se confundir. A relação da heroína com a superiora já não é mais uma simples relação de poder, mas uma relação de desejo. É por intermédio do olhar inocente de Suzanne, Diderot se põe a descrever cenas de prazer, fazendo de -A religiosa- um “romance erótico” e do leitor uma espécie de voyeur.
O romance pode ser lido, assim, como o estudo clínico que prova como a clausura leva necessariamente ao desarranjo da “delicada máquina” humana.
" Fazer voto de pobreza é dedicar-se por juramente a ser preguiçoso e ladrão; fazer voto de castidade é prometer a Deus a infração constante da mais bela e mais importante de suas leis; fazer votos de obediência é renunciar à prerrogativa inalienável do homem, a liberdade." (p.115)
Diante da resistência de Suzanne, a supersticiosa e despótica madre Cristina entrega-se a uma fúria que tem sido comparada às figuras do marquês de Sade; madre de Moni, sucumbe cada qual a seu modo: a superiora iluminada, a quem o dom de consolação jamais faltara, não resiste à absoluta falta de vocação de Suzanne, interpretando-a como o insondável ocultamento de Deus; quanto à libertina, ela se perde diante da inocência e virtude inflexíveis de Suzanne: enlouquece, primeiro de amores, em seguida aterrorizada pelas penas do inferno.
" Não , não é necessário que te levantes , afasta somente um pouco a coberta, a fim de que me aproxime de ti. Querida madre, tornei, mas isso é proibido. Que diriam se o soubessem? Vi religiosas em penitência por coisas menos graves."
"Aqui, as memórias da irmã Susana interrompem-se. O que se segue são simples notas que, muito possivelmente, se propunha usar no resto do seu relato. Parece que a sua superiora enlouqueceu, e é a esse infeliz estado que é preciso aplicar os fragmentos que vou transcrever. Depois desta confissão tivemos alguns dias de serenidade. A alegria voltou a entrar na comunidade e por causa disso fazem-me cumprimentos que eu rejeito com indignação. Ela não me evitava; observava-me, mas a minha presença já não parecia causar-lhe transtorno. Eu tentava esconder o terror que me inspirava desde que, por uma feliz ou fatal curiosidade, tinha aprendido a conhecê-la melhor. Depressa se tornou silenciosa; só diz sim ou não; passeia sozinha. Recusa os alimentos. O sangue aquece-lhe, fica com febre, e o delírio sucede à febre. Sozinha na sua cama, vê-me, fala-me, convida-me a aproximar-me e dirige-me as frases mais ternas. Se ouve alguém próximo do seu quarto, grita: “É ela que passa, são os seus passos, reconheço-os. Chamem-na... Não, não, deixem-na.” (188/189
O conteúdo do livro, diz ele, é de natureza moral e social: o que interessa a Diderot não é a religião, mas “a profissão religiosa” — ou, ainda, as relações da “pessoa humana” com a religião. Mais precisamente, haveria em A religiosa um duplo tema: o das “vocações forçadas” e o da “vida monástica”, tratados de um ponto de vista ao mesmo tempo psicológico e social ou, se quisermos, da perspectiva da moral individual e da moral social.
O alvo principal de Diderot, segundo suas próprias declarações, é assim a instituição do claustro. Contra os conventos, o romance sustenta duas acusações diferentes, ambas materialistas à sua maneira: a de serem cúmplices de uma ordem social e política iníqua e a de fundarem-se num regime que contesta a ordem da natureza.
Quanto à primeira denúncia, Diderot detém-se no tema da vocação. Não é por um movimento espontâneo que a maioria das moças assume a vida monástica, mas por “coação familiar”, por questões de honra e dinheiro. Ainda segundo Mauzi, eis um dos pontos precisos em que se detém a cólera de Diderot:
o conluio entre a Igreja e o mundo, entre uma instituição pretensamente sagrada e as preocupações mais profanas, os ódios mais sórdidos. Os conventos tendiam com efeito a se tornar uma maneira de abuso social comparável às lettres de cachet. Era o duplo recurso concedido pelo poder real às famílias da nobreza e da alta burguesia para fazer desaparecer seus filhos indignos, aqueles cuja conduta provocava escândalo ou que um nascimento vergonhoso frustrava de uma plena existência social.
Fontes:
A religiosa, Diderot, Denis - tradução: Antônio Bulhões e Miécio Tati - Editora Abril Cultural - 1980
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