Vamos falar hoje da música Construção de Chico Buarque de Holanda.
Lembro-me que quando estava terminando o curso de licenciatura na Faculdade de Educação USP, no começo dos anos 80, fizemos um projeto de estágio em escolas públicas, que se baseava no ensino de literatura através da música popular brasileira.
Infelizmente o projeto não foi pra frente, mas alguns frutos daquele trabalho ficaram, como exemplo a linda música "Construção" de 1971, de Chico Buarque de Hollanda, toda com versos alexandrinos (verso com doze sílabas poéticas) todos terminados em proparoxítonas (Antepenúltima sílaba tônica) .
“Construção” é uma letra de protesto, se considerado o contexto histórico em que foi criado, nos anos em que o país estava sob o regime militar. Não é poesia só pelo “tom literário” mas, também, do ponto de vista estrutural. Uma letra riquíssima.
Estruturalmente, há duas características que fazem com que o ritmo e a musicalidade do poema sobreviva mesmo sem música. A primeira é que ele é todo escrito em versos alexandrinos.
“A/mou/da/que/la/VEZ/co/mo/se/fos/se/a/ÚL/tima…” Na verdade, são 12 sílabas com uma cisão na 6ª sílaba, o que ocorre com uma intenção: obriga-nos a uma pequena pausa na 6ª sílaba, assim aumenta a cadência e garante ritmo e musicalidade aos versos. Experimente ler em voz alta os versos da canção com a marcação forte das 6ª e 12ª sílabas de cada verso e você perceberá facilmente o quão rítmica é a letra.
Versos alexandrinos são de elaboração muito difícil e a música inteira é construída assim, o que evidencia a habilidade que Chico Buarque possui como compositor e o uso consciente que faz dos recursos de linguagem.
A segunda característica é o uso recorrente das proparoxítonas pelo compositor. Reparem: todos os versos alexandrinos terminam com uma palavra proparoxítona e a 12ª sílaba tônica é sempre a 1ª sílaba dessa palavra. Peguemos a primeira estrofe: “última/última/único/tímido”. Vejam as estrofes seguintes. Isso reforça a marcação cirúrgica da sílaba tônica e a estrutura rítmica da letra/poema.
São essas palavras proparoxítonas que, mesmo mantendo-se no fim dos versos, mudarão de posição nas estrofes, conforme a letra se desenvolve, e vão modificando significados e imagens ao serem associadas a diferentes substantivos e adjetivos. Através desse jogo, o narrador nos conta uma história.
A história é a de um operário da construção civil que se despede da família pela manhã, vai para o trabalho e, após o intervalo para o almoço, cai do alto da construção em que trabalhava e morre. A história é contada e recontada mais duas vezes. A primeira vez em que é narrada, as imagens criadas, embora poéticas, estão mais próximas de uma literalidade, são uma descrição fiel dos passos do operário, personagem central da letra.
Construção
Construção como todas as músicas do Chico sofreu censura. Falava da saga de um trabalhador comum que era tido como uma mera parte do processo de produção, descartável, e sem notoriedade ao ponto de sua presença só ser sentida quando ele "morreu na contramão atrapalhando o público."
O formalismo que marca a música junto com a narrativa do dia de um operário que morre em serviço acaba servindo para uma crítica social. A alienação do trabalho marca o operário como uma máquina, destituída de características humanas, que serve apenas para executar ações.
A morte em serviço é tratada como um empecilho, não como uma tragédia. A desumanização do trabalhador se torna uma crítica ao modo de produção capitalista, mesmo que o foco da letra seja a construção formal.
O contexto histórico da canção, que foi escrita durante um período de forte repressão da ditadura militar no Brasil, e o fato de Chico Buarque compor diversas músicas de protesto colaboram com essa interpretação.
Porém, independentemente da leitura social, a carga poética que a música adquire no final é marcante. O compositor busca por meio das metáforas e das proparoxítonas criar imagens que fazem com que o cotidiano se torne algo mágico, e transforma o último dia desse trabalhador em uma desconstrução da rotina.
Construção
Amou daquela vez como se fosse a últimaBeijou sua mulher como se fosse a últimaE cada filho seu como se fosse o únicoE atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquinaErgueu no patamar quatro paredes sólidasTijolo com tijolo num desenho mágicoSeus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábadoComeu feijão com arroz como se fosse um príncipeBebeu e soluçou como se fosse um náufragoDançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbadoE flutuou no ar como se fosse um pássaroE se acabou no chão feito um pacote flácidoAgonizou no meio do passeio públicoMorreu na contramão, atrapalhando o tráfego
Amou daquela vez como se fosse o últimoBeijou sua mulher como se fosse a únicaE cada filho seu como se fosse o pródigoE atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólidoErgueu no patamar quatro paredes mágicasTijolo com tijolo num desenho lógicoSeus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipeComeu feijão com arroz como se fosse o máximoBebeu e soluçou como se fosse máquinaDançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse músicaE flutuou no ar como se fosse sábadoE se acabou no chão feito um pacote tímidoAgonizou no meio do passeio náufragoMorreu na contramão atrapalhando o público
Amou daquela vez como se fosse máquinaBeijou sua mulher como se fosse lógicoErgueu no patamar quatro paredes flácidasSentou pra descansar como se fosse um pássaroE flutuou no ar como se fosse um príncipeE se acabou no chão feito um pacote bêbadoMorreu na contramão atrapalhando o sábado
Fontes:
culturagenical.com
artecult.com
aescotilha.com.br
youtube.com
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