Vamos falar de outra obra do escritor Bernardo Guimarães, o Seminarista.
Sobre o autor: Bernardo Guimarães nasceu em Ouro Preto, Minas Gerais em 15 agosto de 1825 e morreu na mesma cidade em 1884. Foi patrono da Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira número 5.
Foi juiz municipal e professor, além de romancista. Sua obra mais conhecida foi Escrava Isaura, mas sua melhor obra é o romance O Seminarista.
O Seminarista - Capítulo Um
A uma légua, pouco mais ou menos, da antiga vila de Tamanduá, na
província de Minas Gerais, e a pouca distância da estrada que vai para a vizinha vila
da Formiga, via-se, há de haver quarenta anos, uma pequena e pobre casa, mas
alva, risonha e nova. Uma porta e duas janelinhas formavam toda a sua frente.
Um estreito caminho, partindo da porta da casa, cortava o vargedo e ia
atravessar o capão e o córrego, por uma pontezinha de madeira, fechada do outro
lado por uma tronqueira de varas. Junto à ponte, de um lado e outro do caminho,
viam-se duas corpulentas paineiras, cujos galhos, entrelaçando-se no ar, formavam
uma arcada de verdura, à entrada do campo onde pastava o gado.
Era uma bela tarde de janeiro. Dois meninos brincavam à sombra das
paineiras: um rapazinho de doze a treze anos e uma menina, que parecia ser pouco
mais nova do que ele.
A menina era morena; de olhos grandes, negros e cheios de vivacidade, de
corpo esbelto e flexível como o pendão da embaúba.
O rapaz era alvo, de cabelos castanhos, de olhar meigo e plácido e em sua
fisionomia como em todo o seu ser transluziam indícios de uma índole pacata, doce
e branda.
A menina, sentada sobre a relva, despencava um molho de flores silvestres
de que estava fabricando um ramalhete, enquanto seu companheiro, atracando-se
como um macaco aos galhos das paineiras, balouçava-se no ar, fazia mil passes e
piruetas para diverti-la.
Perto deles, espalhados no vargedo, umas três ou quatro vacas e mais
algumas reses estavam tosando tranquilamente o fresco e viçoso capim.
O sol, que já não se via no céu, tocava com uma luz de ouro os topes
abaulados dos altos espigões; uma aragem quase imperceptível mal rumorejava
pelas abas do capão e esvoaçava por aquelas baixadas cheias de sombra.
Os pais de Eugênio, capitão Antunes e sua mulher, fazendeiros em Minas, obrigam o filho a ser padre. Eugênio passou a infância ao lado de Margarida, filha de uma agregada da fazenda. Dessa convivência nasceu o amor, e os pais do menino, para impedir o avanço dessa paixão, colocaram o filho num seminário, obrigando-o a seguir a carreira eclesiástica.
Eugênio era filho do capitão Francisco Antunes, fazendeiro de medianas
posses. Trabalhador, bom e extremoso pai de família, liso e sincero em seus
negócios, partidista firme, e cidadão sempre pronto para os ônus públicos, nada lhe
faltava para gozar da maior consideração e respeito entre os seus conterrâneos.
Antunes tinha terras de sobejo para a pouca escravatura que possuía, e
portanto dava morada em sua fazenda a diversos agregados, sem lhes exigir
contribuição alguma, nem em serviço nem em dinheiro.
Entre esses agregados contava-se d. Umbelina, que, com sua filha
Margarida e uma velha escrava, ocupava a casinha que descrevemos no capítulo
antecedente. Umbelina vivia de sua pequena bitácula¹ à beira da estrada, vendendo
aguardente e quitandas aos viandantes, cultivando seu quintal, pensando suas
vaquinhas, e da venda de frutas, hortaliças e leite sabia com sua diligência e
economia tirar um sofrível rendimento.
(p.4)
Mesmo no seminário, Eugênio não esquece Margarida. Seus pais, então, juntamente com os sacerdotes do Seminário de Congonhas do Campo, inventam a notícia do casamento da moça, o que desilude o rapaz e o faz aceitar a carreira que lhe fora imposta.
No seminário o menino Eugênio era um exemplo de boa conduta e
aplicação. Cordato, dócil e obediente, depressa granjeou a benevolência e estima
dos padres, e a simpatia de seus companheiros. No estudo, porém, não deu a
princípio muito boas contas de si, nem apresentou os progressos que eram de
esperar de sua boa memória e inteligência.
A imagem de Margarida e a saudade do lar paterno enchiam-lhe de sombra o
espírito e o coração para deixarem lugar às fastidiosas lições de gramática latina. O
compêndio de Antônio Pereira foi para ele um pesadelo, diante do qual teve de gemer
e suar por alguns meses. Lia e relia as páginas da lição a ponto de as esfarelar para
conseguir gravar na memória algumas palavras. É que eram seus olhos somente que
passeavam por sobre aquelas letras mortas, que nada diziam ao seu espírito. (p.13)
Quando retorna à vila natal, já como padre, é chamado para assistir uma doente, que era a própria Margarida. A moça lhe conta toda a verdade: fora expulsa da fazenda com a mãe, passara necessidade e jamais casara, porque ainda o amava. Eugênio sente renascer o amor por Margarida e, no dia seguinte, ambos se entregam à paixão. O padre sabe que cometeu grave pecado, pois traiu os votos de castidade, o que lhe causa grande remorso.
— Sofro muito, muito!... Parece que a cada momento se me rebenta o
coração — mas agora... Como o senhor veio, sinto-me feliz; já não morro tão
sozinha... Tão desamparada.
— Desamparada!... pois onde está seu marido?
— Meu marido!... Exclamou a moça atônita. — Tenho eu algum marido?...
— Pois a senhora não casou-se!?
— Eu? Quem lhe disse isso?...
— Disseram-me; então não é verdade?...
— Não; nunca!... Quiseram casar-me, isso sim; mas eu nunca quis... Meu
Deus! por que haviam de enganá-lo assim?...
— Ah! Meu pai! Meu pai! — murmurou consigo o padre agora compreendo
tudo... Para que semelhante mentira?... Pobre Margarida! — continuou dirigindo-se à
moça — como zombaram cruelmente de ti, e de mim!... (p.67)
No dia em que se preparava para rezar sua primeira missa, é chamado para encomendar um cadáver que acabara de chegar à igreja. O corpo era o de Margarida. Eugênio não suporta o impacto da morte da amada e, na hora de sua primeira missa, acaba endoidecendo.
A missa do padre novo, que gozava de uma grande nomeada de sabedoria
e santidade, tinha atraído à igreja um numeroso e brilhante concurso. O pai e a mãe
de Eugênio estavam no auge do contentamento.
Chegando à escada que sobe para o altar-mor o padre parou, e quando já
todos de joelhos esperavam que rezasse o "introito", viram-no com assombro
arrancar do corpo um por um todos os paramentos sacerdotais, arrojá-los com fúria
aos pés do altar, e com os olhos desvairados, os cabelos hirtos, os passos
cambaleantes, atravessar a multidão pasmada, e sair correndo pela porta principal.
Estava louco... Louco furioso. (p.74)
O livro veio a público um ano depois de uma forte campanha através dos jornais contra o episcopado no Rio de Janeiro, num episódio conhecido na história do Brasil como a "Questão religiosa"². A obra teve grande repercussão. Nela, o autor fez algumas críticas sociais, sendo as mais importantes as dirigidas ao patriarcalismo da época, ao celibato clerical e o autoritarismo das famílias do século XIX, que impediam o jovem de seguir um caminho escolhido.
¹ - pequena venda, vendinha
² Durante o segundo reinado, o papa Pio IX fez uma bula determinando a excomunhão de todos os católicos que abraçassem a maçonaria, o que foi totalmente desconsiderado pelo imperador Pedro II.
A obra foi adaptada para o cinema no filme O Seminarista de Geraldo Santos Pereira, lançado em 1977.
O Seminarista - 1977 (trailer)
Fontes:
wikipedia.org
portugues.seed.pr.gov.br
ebiografia.com
coladaweb.com
mundoeducacao.uol.com.br
youtube.com
languages.oup.com/google-dictionary-pt
Guimaraes, Bernardo - O seminarista - Ed. Ática - 1991
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