sexta-feira, 27 de maio de 2022

Vamos falar da obra do escritor Fernando Sabino, O grande Mentecapto.







O Grande Mentecapto é um romance do escritor brasileiro Fernando Sabino publicado em 1979; narra as aventuras de Geraldo Viramundo, espécie de Dom Quixote de La Mancha brasileiro, que percorre Minas Gerais.


Fernando Sabino


O início do livro mostra que Geraldo foi um menino como qualquer outro, tivera suas maluquices e peraltices, porém a história se desenvolve a partir das consequências de uma aposta entre Viramundo e seus amigos de que conseguiria fazer o trem parar em seu município, já que Rio Acima (a cidade do menino) não era originalmente ponto de sua parada. A narrativa apresenta diversas referências quixotescas, e de modo cômico e emocionante retrata como a vida pode surpreender quando menos se espera.


CAPÍTULO I


De como Geraldo Viramundo, tendo nascido em Rio Acima, foi parar no seminário de Mariana, depois de virar homem, levado por um padre que um dia passou por lá. O VERDADEIRO nome de Geraldo Viramundo, embora ele afirmasse ser José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva, era realmente Geraldo Boaventura, e assim está lançado no livro de nascimentos em Rio Acima. Seu pai, um português, tinha vindo para o Brasil em 189***, na primeira leva de imigrantes que sucedeu ao decreto de nova política imigratória da República recém-proclamada, e se casou no Rio com uma italiana naquele mesmo ano. Como ele foi acabar morando em Rio Acima, só Deus sabe. Boaventura tinha junto à estrada sua casinhola, à frente da qual duas portas se abriam para o pomposamente chamado "Armazém Boaventura - Secos e Molhados", não mais que uma venda, de cujos proventos vivia a família toda - e eram treze filhos. (p.4)

Nesse romance, Fernando Sabino, descreve um brasileiro simples, representante da população mais humilde e cheio de sonhos de conquistas e vitórias.


Teve uma infância juntos a seus irmãos de menino normal, com  travessuras e brincadeiras.


"A infância de Geraldo Viramundo transcorreu como a de seus irmãos. Como seus irmãos ele comeu terra, botou lombrigas, arrebentou cupim para ver como era dentro, seguiu as formigas para ver aonde iam, misturou açúcar com sal no armazém, furtou garrafa de guaraná e depois mijou dentro botando no lugar para o pai não descobrir, brinco com fogo e mijou na cama, brincou de pegador, tic-tac carambola, este dentro e este fora, matou passarinho com bodoque, enterrou ovo choco e fez fogo em cima para ver se nascia pinto, foi mordido de marimbondo e ficou de cara inchada, amarrou lata vazia em rabo de gato, fez galinha dançar em cima de lata quente, contou com o ovo no rabo da galinha, enfiou o dedo no rabo dela, teve sarampo, catapora, caxumba e coqueluche, pegou sarna para se coçar, correu de boi bravo, botou cigarro na boca de sapo para ele fumar até rebentar, se escondeu na cesta de roupa suja para ver a irmã mais velha tomar banho, quis pegar a irmã mais nova e depois teve remorso, perdeu a virgindade numa cabrita, fugiu de casa e apanhou e por isso tornou a fugir e por isso tornou a apanhar, construiu casinhas de barro, caiu da árvore e se machucou, comeu manga com leite e adoeceu, contou as estrelas do céu e ficou com berrugas, pegou carona em caminhão..." (p.5)

Adorava nadar no rio do outro lado da cidade:

 

"Sei só que Geraldo, mal acabava a aula na escola, saía correndo feito doido em direção ao rio, do outro lado da cidade. Às vezes iam com ele alguns companheiros, os irmãos; às vezes ele ia só. Lá chegando, tirava a roupa toda e se atirava n água, mesmo que estivesse fazendo frio. Quando outros iam com ele, ficavam brincando de se empurrar, fazer guerra de água, mergulhar para passar debaixo das pernas uns dos outros ou simplesmente para fazer borbulha. Os mais corajosos conseguiam cruzar a correnteza a nado e atingir a outra margem. Um dia um menino morreu afogado, um pretinho chamado Brejela, mas nesse dia Geraldo Viramundo não estava lá, e portanto nada tem a ver com a nossa história." (p.5)


Perambula pelas terras de Minas Gerais tal qual um Quixote, lutando contra injustiças e buscando um amor em Marília, filha do prefeito e amor inatingível. Para ele em sua ingenuidade a sua tarefa é consertar o mundo das injustiças.

Seu grande feito em criança foi fazer o trem parar em Rio Acima, lugarejo onde morava.

"O apito agora era continuado, as rodas rangiam nos trilhos, o barulho perdia o ritmo numa desordem de silvos e entrechoque de ferros. Geraldo, braços ainda erguidos, lembrou-se de prometer vinte ave-marias e vinte padre-nossos se o trem parasse - não se ele não morresse, mas se o trem parasse - e foi a última coisa de que se lembrou. Os freios rinchavam doidamente, a máquina esguichava fumaça e vapor por todos os lados, perdendo velocidade, já se podia distinguir o braço do maquinista do lado de fora em frenéticos sinais. Embora quase devagar, a locomotiva, a resfolegar como um touro enfurecido, já estava tremendamente perto quando se deteve, num arranque último e mais forte, que fez se chocarem com violência os carros uns nos outros do primeiro ao último. No alto do barranco os meninos naquela sarabanda de emoção espiavam, pálidos, boquiabertos, desfigurados - os poucos que tiveram coragem de olhar. Geraldo Viramundo abriu devagarinho os olhos e viu de perto, a menos de dez metros, aquela máquina preta e enorme, avassaladora, a muralha de ferro do limpa-trilhos, o vidro do farol brilhando como o olho de Deus, aquele arfar incessante do monstro derrotado. Sentiu subir dentro de si uma onda de entusiasmo, agitou loucamente os braços, pulando sobre o dormente: - Ele parou! Ele parou, pessoal! Ele parou!"

Outro menino de seis anos, Pingolinha, encantando com o feito e a fama de  Geraldo Boaventura, vulgo, Viramundo, tentou ficar famoso também. O trem nesse dia não parou. A cidade ficou toda enternecida com a morte do filho do sapateiro, e todos culparam Viramundo 

Ficou famoso na cidadezinha, com suas peripécias e sua forma simples de resolver problemas complicados; que para ele são tão simples como sua simplicidade os faz.

Um dia, mais tarde resolve entrar para o seminário em Mariana. Um dia se meteu no confessionário para ouvir as inconfidências de Dona Petrolina.





"- Bem, então eu vou começar no ponto em que deixei no sábado passado. E começou. Se há quem pense que vou passar agora a revelar os pecados da viúva Correia Lopes, muito se engana. Eles, por si só, bastariam para fazer com que Geraldo Viramundo de novo adormecesse, e com ele, eu e meus possíveis leitores - não fosse o que se passou em seguida. Depois de desfiar seus intermináveis pecadinhos, a viúva Correia Lopes começou a estranhar o silêncio do padre: - Padre Tibério - ela chamou. Era preciso responder alguma coisa. Geraldo Viramundo fez apenas "Ahn?", através da janelinha, e continuou calado. - Pensei que o senhor tivesse dormido... Viramundo fez de novo "Ahn", desta vez em tom reticente. A mulher ficou em silêncio, à espera. Como ele não dissesse mais nada, comunicou: - É só, padre Tibério. Se continuasse indefinidamente resmungando "ahn" dentro do confessionário, a viúva nunca mais iria embora. E agora, que fazer? Havia o perigo de padre Tibério voltar de uma hora para outra. Então pensou em falar apenas "está bem", mas, em se tratando de pecado, não podia estar bem, e sim estar mal, muito mal, minha filha - qualquer coisa assim. Em vez disso perguntou, numa voz bafejada, o mais clerical que lhe foi possível: - É só? - É só - repetiu a viúva, temerosamente, e acrescentou: - Bem, padre Tibério, há mais, e o pior. Quero lhe pedir um conselho." (p.25)


Descoberto pelo sacrilégio de ouvir uma confissão como se padre fosse, Viramundo foi expulso do seminário. 

A confissão da viúva Correia Lopes, jocosamente chamada de Peidolina, especialmente àquela que se referia ao defunto marido que vinha todas as noites para deitar em sua cama, espalhou-se pela cidade inteira.

A confusão foi tamanha que as pudicas senhoras da cidade passaram a atacar  Dona Petrolina, ou como era conhecida Peidolina, por fornicar com um morto.


Depois disso Viramundo percorreu várias cidades e foi parar em Ouro Preto, onde conheceu o amor de sua vida, Marília, filha do governador de Minas Gerais.

"Por esta época Sua Excelência, o Governador Geral Clarimundo Ladisbão, senhor absoluto da Província e que corria seus domínios seguido de grande comitiva, veio dar a Ouro Preto, o que foi ensejo de grandes festejos públicos, com graves prejuízos para os cofres municipais. Várias obras que se arrastavam pelos anos afora foram rapidamente ultimadas para que o senhor Governador as inaugurasse; apressou-se a formatura dos estudantes para que o senhor Governador a paraninfasse e o Prefeito chegou mesmo a sugerir que se realizassem logo as célebres festividades da Semana Santa para que o senhor Governador delas participasse - o que infelizmente não foi possível, dada a peremptória recusa da Cúria local. Ora, acompanhava o Governador Ladisbão sua filha Marília, gentil senhorita de ricas prendas e bela de porte, esbelta de maneiras, moça de fino trato e esmerada educação. E Viramundo, ao vê-la pela primeira vez, devido a um lamentável equívoco, viu nela o ente escolhido de seu coração." (p.42)


Em Mariana , como era de se esperar, Viramundo se mete em várias confusões, saí em direção à Barbacena.



ANDANDO por paus e por pedras, fazendo das tripas coração, metendo-se em camisa onze varas, comendo o pão que o diabo amassou com o rabo, e encravilhando-se em fofas, Geraldo Viramundo chegou a Barbacena. Tantas e tais coisas lhe aconteceram pelo caminho, que só elas, devidamente narradas, dariam outro livro relato de sua vida, tão extenso como este em que me empenho. Deixo a biógrafos mais bem-dotados a oportunidade de completar o meu trabalho, metendo a nos meandros que de passagem vão ficando inexplorados como os que aqui se referem aos caminhos e descaminhos de Viramundo de Ouro Preto a Barbacena e tudo que de estranho lhe aconteceu. Faço mais: forneço dados para pesquisas, referindo-me a certos episódios desse tempo, como o da cabra que Viramundo encontrou numa grota onde veio a se abrigar; o caminhão enguiçado que Viramundo fez funcionar, o do lenhador que chorava por ter perdido a sua filhinha e que Viramundo consolou; o da mulher prenha de doze meses cujo filho, Viramundo, por um expediente bem-sucedido, logrou que nascesse. (p.53)

Viramundo, tentou comprar rosas para dá-las à Marília, sua amada, no entanto não tinha dinheiro e foi escorraçado por Herr Bossman, dono do roseiral.

À noite ajudado pelo vendedor de esterco Barbeca, voltaram à propriedade do alemão e roubaram várias rosas.

Descobertos, Barbeca foi preso e Viramundo, já com fama de louco, foi enviado a um sanatório, dos muitos que havia na cidade.

No dia seguinte Herr Bosmann, verificando o estrago no seu roseiral, deu queixa à polícia, e esta não teve dificuldade em descobrir os responsáveis. Foram imediatamente detidos; o vendedor de esterco Barbeca foi trancafiado no xadrez, se não por esta, por outras queixas mais antigas que contra ele se registravam; Viramundo, deixando transparecer logo à primeira vista as precárias condições de seu estado mental, foi recolhido a um manicômio.



"AO DAR entrada em sua nova residência, Geraldo Viramundo foi levado diretamente ao gabinete do diretor, um velhinho de cabeça branca e olhos azuis que atendia pelo nome de Dr. Pantaleão. - Você o que é, meu filho? - perguntou o Dr. Pantaleão. - Sou cristão pela graça de Deus - respondeu Viramundo. - Isso! Assim é que serve. Esse pelo menos fala. Cada doido com sua mania. De médico e louco todos temos um pouco. Eu estou perguntando qual é a sua encarnação. Antes que Viramundo pensasse em responder, Dr. Pantaleão disparava a falar, muito depressinha: - Napoleão ainda temos uns três ou quatro. Já tivemos uma porção. Nunca tivemos é um papa, mas santos temos vários. Temos também um que é grão de milho, não pode ver uma galinha, foge correndo. E tem outro que é justamente galinha, vive a perseguir o pobre do grão de milho, cacarejando. Tem um que é cafeteira: passa o dia inteiro com um braço na cintura e outro para cima, mas não serve café a ninguém, acho que está vazia. Tem de tudo. Dom Pedro temos dois. Pedro Segundo, digo. Não sei por que, mas Pedro Primeiro nunca mais apareceu." (p.57)


Um dia Viramundo vê o rabugento Herr Bossman na sala do diretor. Queria certificar-se de que Viramundo estava sendo punido devidamente pelo crime cometido.

Viramundo correu para a enfermaria onde achou um jaleco de médico e o vestiu. Encontrou dois enfermeiros e pôs em prática seu plano dizendo para ambos que na sala do diretor estava um homem perigoso, que se dizia estrangeiro e tinha um roseiral. Era para esse homem ser internado imediatamente.

"Os dois guardiões não vacilaram em dar cumprimento às ordens do Dr. Peres da Nóbrega e Silva. Dirigiram-se decididos à sala de espera, empolgaram sem perda de tempo o alemão pelos braços e pelas pernas e recolheram-no ao hospício, por mais que ele esperneasse, tomado de fúria ao ver Viramundo todo catita no seu jaleco de médico: - É ele! É o vagabundo que destruiu minhas roseiras! Ele é que é o doido e não eu! Reza a crônica da cidade que Herr Bosmann teria ficado no hospício o resto de sua vida, já investido na personalidade do Kaiser Guilherme II, Rei da Prússia e Imperador da Germânia, assegurando a todos que a Alemanha sairia vitoriosa na guerra de 1914. Quanto a isso, eu não saberia dizer. Sei apenas que seus gritos de protesto ainda ecoavam pelos corredores do manicômio e o Dr. José Geraldo Peres da Nóbrega e Silva já ganhava calmamente a rua, lastimando apenas não ter-se despedido do Dr. Pantaleão que, colega para colega, não era má pessoa, apenas um pouco alcançado pela idade no seu descortino mental."(p.61)


Voltou a encontrar Barbeca na cidade e entabularam conversação sobre a rivalidade entre os Bias e os Bonifascistas.  Viamundo não sabia quem eram os bias e tampouco os bonifascistas. Foram conversando sobre essas controversas até chegarem a um café na praça principal da cidade.


"- Esse café, por exemplo - perguntou Viramundo: - É bíista ou bonifacista? - Nem um nem outro - respondeu Barbeca: - É o único lugar da cidade que não é de nenhum dos dois, porque ficou sendo o café do seu Jorge francês. - Quem é seu Jorge francês? - É um escritor muito importante que veio morar em Barbacena. É o segundo romancista vivo da França. - Qual é o primeiro? Barbeca passou a mão pela barba: - O primeiro eu não sei não. E apontou: - Olha ele lá. Passa o dia inteiro escrevendo os livros dele naquela mesa. Interessado, Viramundo olhou para onde apontava o outro. Ao ver aquele senhor corpulento de bigode grisalho e olhos claros, tendo a seu lado duas bengalas e debruçado numa das mesas do café a escrever sem parar, o grande mentecapto, que, conforme eu já disse, era versado em literatura, bateu com a mão na testa: - É o Georges Bemanos! Já li um livro dele! E entrou intrepidamente café adentro, foi direto ao romancista, fez-lhe uma grande mesura: - Permita-me cumprimentar o consagrado autor do "Diário de um Pároco de Aldeia" na tradução de Edgar de Godoi da Mata Machado! O escritor olhou-o num misto de surpresa e curiosidade: - Je ne parle pas le portugais - explicou. O grande mentecapto, versado no idioma de Montaigne, respondeu prontamente: - J'ai perdu ma plume dans le jardin de ma tante! E prosseguiu, excitadíssimo: - Après moi, le déluge! À quelque chose, malheur est bon! À tout seigneur, tout honneur! L'État c'est moi! Le léon est le roi des animaux! Le roi est mort, vive le roi! Sans peur et sans reproche! Tout le monde et son père! Et pour cause! Excusez du peu! Com isso se esgotaram os conhecimentos de francês do grande mentecapto. Cada vez mais entusiasmado com a proximidade de um escritor de verdade, figura ilustre da literatura francesa e quiçá universal, arrematou: - Permita-me homenageá-lo, oferecendo-lhe um modesto regalo. Pôs-se a retirar dos bolsos seus pertences, os quais já foram enumerados em parte anterior deste trabalho, e que continuavam os mesmos, a saber: um pedaço de barbante, uma escova de dentes, um terço, um toco de lápis, uma caderneta, um lenço vermelho e alguns recortes de jornais. A eles acrescentavam-se o maço de cartas de Marília Ladisbão e um coco-da-serra que havia colhido no mato ainda aquela manhã, o qual pretendia comer como sobremesa ao jantar, se jantar houvesse. Embora invariavelmente recusasse esmolas, aceitava de bom grado qualquer ajuda que se substanciasse em alimento. Estendeu o coco ao romancista: - Peço-lhe que não ponha reparo na humildade desta oferenda." (p.64)


Eram frases em francês desconexas e totalmente fora de contexto . Via-se bem que a  erudição de Viamundo na língua francesa não passava de algumas frases decoradas.


Corria na época na cidade de Barbacena uma campanha para eleger como prefeito um candidato único indicado pelo governador de Minas Gerais. Como protesto a oposição resolveu lançar um candidato próprio, um pândego qualquer. A indicação logo caiu sobre Viramundo.



"Uma comissão recrutada entre os frequentadores do bar dos bias foi jocosamente comunicar ao grande mentecapto o papel histórico que lhe estava reservado, logo secundada por outra comissão, egressa do bar dos bonifacios. Viramundo, que tinha como abrigo nas suas noites os desvãos das pontes, as soleiras das portas e as betesgas¹ dos subúrbios, erigira em seu escritório e quartel general um banco da praça. Ali o foram encontrar os portadores da honrosa missão que lhe era outorgada. - Se for para o bem de todos e felicidade geral da nação, diga ao povo que aceito - disse ele, comovido. A partir de então a cidade se alvoroçou com a farsa com que pretendiam afrontar o governo. O candidato se compenetrou de seu papel, e comícios eram promovidos quase todos os dias, com grande concentração popular, nos quais ele pregava o seu programa. Começava por defender a tese de que os grandes males da humanidade advêm do dinheiro: o vil metal era uma instituição abominável, que deveria ser para sempre abolida na relação entre os homens. Cada um teria uma cadernetinha, onde simplesmente anotaria em quanto andava seu débito em relação às outras pessoas, débito que se abateria face ao que estas mesmas pessoas lhe devessem. Tão engenhosa teoria econômica era discutida por todos, entre motejos, ensejando novas hipóteses e suposições: como proceder em relação ao fisco? Como se compensariam as rameiras em relação à sua prestação de serviços, que eram de utilidade pública, na vigência de tal sistema creditício?" (p.66) ¹ -  ruas estreitas e sem saídas.


Pôs a debater com Praxedes Borba Gato, candidato oponente nas eleições:

- Qual é o nome do pai do filho de Zebedeu? - Zebedeu - respondeu Viramundo. - Zebedeu não tinha filhos - replicou o professor. Esta sofismática contestação, sem nenhum fundamento lógico ou histórico, foi seguida de uma grande assuada do público, o que valia por uma aclamação a Viramundo. A patuleia, sem maior discernimento, queria divertir-se ao máximo com a contenda e tudo servia como divertimento. Cabia a Viramundo interpelar o adversário. O grande mentecapto foi desfechando logo: - De que cor era o cavalo branco de Napoleão? - Branco, é claro - respondeu o professor com um sorriso escarninho. Viramundo pagou-lhe na mesma moeda: - Napoleão não andava a cavalo. Sofria de hemorroidas. A esta altura Praxedes Borba Gato via perigar a sua superioridade diante do contendor. O mequetrefe estava lhe saindo melhor do que a encomenda. Não podia correr o risco de uma derrota naquela aventura em que se tinha metido, confiante em sua alta prosopopeia, sem ao menos o beneplácito do Governador Ladisbão, a quem se dispensara de consultar, tão certo estava da vitória. Enquanto se perdia nestas cismas, olhando distraidamente o tenente da escolta que o acompanhava, ocorreu-lhe de súbito uma saída para a alhada em que já se via metido. Chamou então o oficial e cochichou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Depois voltou-se para o adversário: - Duas pessoas se encontraram no escuro e uma disse: Boa noite, meu filho. Ao que o outro respondeu: Boa noite, meu pai. Tomou o primeiro: Você é meu filho, mas eu não sou seu pai. O que era? - A mãe - liquidou Viramundo. - O outro era o filho da mãe. Enquanto o público explodia em aplausos, propôs a sua última questão: - Nabucodonosor, Rei da Babilônia. Escreve isto com quatro letras. O professor meditou um pouco e dirigiu-se ao quadro-negro, pôs-se a escrever várias letras a esmo. Acabou desistindo: - É impossível. Viramundo avançou, tomou do giz e escreveu rapidamente na lousa: I-S-TO. Foi uma consagração. O povo aplaudia freneticamente o grande mentecapto, enquanto o locutor Jovino proclamava a sua vitória. Quando o comandante da escolta se acercou dele, todos julgaram ser para cumprimentá-lo, numa louvável atitude que foi saudada com aplausos. - Você já foi conscrito? - perguntou-lhe o militar. - Não. Fui só batizado e crismado - respondeu o mentecapto. - Serviu em corpo de tropa? - Não. Quando eu era menino queria ser da tropa dos escoteiros, mas meu pai não deixou. - Então você é insubmisso. Esteja preso. Convocou seus comandados com um gesto e estes cercaram o grande mentecapto, que assim foi retirado do palanque sob delirantes aplausos da multidão, como se estivesse sendo escoltado em triunfo. No mesmo dia, sob guarda de dois praças, foi metido num trem e levado para Juiz de Fora, sede da região militar, para integrar o glorioso Exército de Caxias e assim cumprir seu dever para com a pátria. (p.71)


No exército continuou a fazer suas patranhas, sendo devolvido para vida civil . 


Foi quando se deu o episódio que, graças ao extraordinário patriotismo do grande mentecapto, veio acabar com a guerra, praticamente antes de ter ela começado (p.85)


Como sabemos todo mentecapto tem seus sonhos de grandeza embrenhados em suas loucuras.

Volta a circular por diversas cidades de Minas Gerais, totalmente perturbado.


CAPÍTULO VI

 

"Da passagem musical de Viramundo por São João Del Rei, sua estada na prisão de Tiradentes e o crime de João Toco, até a crise espiritual que o levou à desesperança em Congonhas do Campo." (p.91)

Rodou as cidades espalhando sua loucura e suas ambições de mudar o mundo. Se meteu com trabalhadores braçais, prostituas, mendigos, vagabundos e arruaceiros, levando a sua dita revolução.

Foi morto à caminho do Rio de Janeiro.




"É COM pesar que ponho o ponto final neste relato. Tanto me queixei ao longo do caminho que me trouxe até aqui, acidentado e cheio de tropeços como a própria vida do meu personagem, e agora que dele me despeço sinto na alma um vazio, e certo aperto no coração. É que acabei me afeiçoando ao grande mentecapto, e seu destino foi ficando de tal maneira identificado ao meu, que já não sei onde termina um e começa o outro. No entanto, não gostaria de ter o destino que ele teve: Geraldo Boaventura, 33 anos, sem profissão, natural de Rio Acima, foi enterrado como indigente numa cova rasa do cemitério local. Causa mortis: ignorada. Cabe-me, aqui, encerrar o meu trabalho com algumas referências ao destino que tiveram os demais personagens. A começar pelos dois que ali deixei, acompanhando a agonia de seu amigo. Barbeca logrou regressar a Barbacena, onde retomou seu negócio de esterco, sendo hoje comerciante do ramo naquela cidade. O capitão Batatinhas, depois de uma temporada a mais num dos hospícios de Barbacena, onde foi parar em companhia do outro, reingressou na ativa, prosseguiu na carreira militar até cair na compulsória e hoje é general de pijama (sem ser riscadinho). Os demais, pela ordem: Cremilda, a do primeiro beijo, é casada com Breno Boaventura, que, depois de suplantar com seu armazém os italianos do empório, hoje é dono de um supermercado em Rio Acima. Dona Nina, mãe de Geraldo Viramundo, jamais chegou á saber da tragédia em que se viram envolvido dois filhos seus, e do sacrifício de um deles, que o outro ajudou a consumar: cedo juntou-se a Boaventura, que havia muito já morrera. A viúva Correia Lopes, de nome Pietrolina, dita Peidolina e mais tarde dona Lina, aposentou-se depois que a intransigência das autoridades veio dificultar o seu negócio, e lamento dizer que seu destino não foi dos mais felizes: velha e doente, viu-se recolhida a um asilo que não fica muito a dever à Cidade Livre dos Mendigos. O estudante Dionísio, depois de expulso deste livro, deu baixa no Exército e regressou aos estudos, sendo hoje conceituado engenheiro, formado pela Escola de Minas de Ouro Preto."(p.151)

Viramundo era tido como louco, por suas excentricidades, e suas ideias. Mas afinal o que é ser louco ?  Loucos são àqueles  que pensam diferente da maioria ? Ou são aqueles que discordam da normalidade.




Fontes:
Sabino, Fernando - O grande Mentecapto - 1979
google.com
wikipedia.org
alunos.diaadia.pr.gov.br
algosobre.com.br
paginadoricardo.wordpress.com
record.com.br


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