Carinho triste
A tua boca ingênua e triste E voluptuosa, que eu saberia fazer
Sorrir em meio dos pesares e chorar em meio das alegrias,
A tua boca ingênua e triste
É dele quando ele bem quer.
Os teus seios miraculosos,
Que amamentaram sem perder
O precário frescor da pubescência,
Teus seios, que são como os seios intatos das virgens,
São dele quando ele bem quer.
O teu claro ventre,
Onde como no ventre da terra ouço bater
O mistério de novas vidas e de novos pensamentos,
Teu ventre, cujo contorno tem a pureza da linha de mar e céu ao pôr do sol,
É dele quando ele bem quer.
Só não é dele a tua tristeza.
Tristeza dos que perderam o gosto de viver.
Dos que a vida traiu impiedosamente.
Tristeza de criança que se deve afagar e acalentar.
(A minha tristeza também!...)
Só não é dele a tua tristeza, ó minha triste amiga!
Porque ele não a quer.
1913
Num dia como hoje, 19 de abril de 1886, nascia um dos maiores poetas da literatura brasileira, Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho.
Manuel Bandeira iniciou seus estudos no Recife. Em 1896, com 10 anos, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, concluindo o curso secundário no Colégio Pedro II. Em 1903 ingressou no curso de Arquitetura da Escola Politécnica de São Paulo, mas interrompeu os estudos para tratar de uma tuberculose.
Dez anos depois, ainda doente, foi para a Suíça em busca da cura, onde permaneceu durante um ano, de 1913 a 1914, eliminando definitivamente a doença. Nesse período, conviveu com o poeta francês, internado na mesma clínica, Paul Éluard, sem a menor esperança de sobreviver, conforme confessou posteriormente no poema Pneumotórax, do livro Libertinagem.
Pneumotórax [Manuel Bandeira]
Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
……………………………………………………………………….
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
[Libertinagem]
Em 1917, Manuel Bandeira publicou seu primeiro livro, "A Cinza das Horas", de nítida influência Parnasiana e Simbolista, no qual os poemas são contaminados pela melancolia e pelo sofrimento, como no poema : Desencanto:
Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.
Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota do coração.
E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
Eu faço versos como quem morre.
Primeiro livro de Manuel Bandeira, A Cinza das Horas, é marcado pelo tom
fúnebre, e traz poemas parnasiano-simbolistas. São poesias compostas durante o
período de sua doença. Do ano em que o poeta adoece até 1917, quando publica A
Cinza das Horas, é que se daria a etapa decisiva e a inusitada gestação de
um dos maiores escritores da língua portuguesa.
Segundo ele próprio, Manuel Bandeira, quando publica esse livro não tinha a
intenção de começar carreira literária: “desejava apenas dar-me a ilusão de
não viver inteiramente ocioso”.
O eu-lírico vivencia o ato de morrer à medida que (des)escreve
sua agonia em seus versos que são seu sangue.
EPÍGRAFE
Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugia e como um furacão,
Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeu:
Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria…
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.
– Esta pouca cinza fria.
1917.
Apesar de dizer não apoiar o Movimento Modernista, é dele um dos poemas que foi declamado embaixo de vaias no palco do Teatro Municipal de São Paulo por Ronald de Carvalho de nome "Os Sapos".
Os Sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos. (...)
Manuel Bandeira foi cada vez mais se engajando no ideário modernista e sua adesão às novas técnicas deu-se gradativamente, à medida que via na renovação a única alternativa à sua poesia.
Em 1924 publicou "Ritmo Dissoluto", obra de transição. A partir de 1925, escreveu crônicas para jornais quando faz críticas de cinema e música.
Em 1930, Manuel Bandeira publicou "Libertinagem", obra de plena maturidade modernista, com todas as suas implicações (verso livre, língua coloquial, irreverência, liberdade criadora etc.), e o alargamento da lírica nacional pela sua capacidade de extrair a poesia das coisas aparentemente banais do cotidiano.
Os temas mais comuns da obra de Bandeira são: a paixão pela vida, a morte, o amor e o erotismo, a solidão, a angústia existencial, o cotidiano e a infância.
Na obra Libertinagem se destacam os poemas: "O Cacto", "Pneumotórax", "Evocação ao Recife", nos quais tematiza a infância fazendo uma descrição da cidade do Recife no fim do século XIX, e Vou-me Embora pra Pasárgada, uma espécie de autobiografia lírica:
Vou-me Embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d'água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
Nesse poema, Bandeira acentua suas vontades, por vezes negadas por sua doença, como :montar em burro brabo, tomar banho de mar, subir em pau de sebo.
Foi como poeta que Manuel Bandeira conquistou sua posição de relevo na literatura brasileira, mas se dedicou também à prosa, crônicas e memórias. Em 1938, Manuel Bandeira foi nomeado professor de Literatura do Colégio Pedro II.
Em 1940 foi eleito para Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira de n.º 24. Em 1943 foi nomeado professor de Literatura Hispano-Americana da Faculdade Nacional de Filosofia.
Manuel Bandeira faleceu no Rio de Janeiro, no dia 13 de outubro de 1968. Suas poesias haviam sido reunidas, pouco antes, em Estrela da Vida Inteira (1966).
Manuel Bandeira foi homenageado no Recife com uma estátua localizada na Rua da Aurora nas margens do rio Capibaribe. Na casa onde morou, um prédio tombado, funciona “O Espaço Pasárgada”, um centro cultural onde se realizam várias atividades voltadas à literatura, como lançamento de livros, recitais poéticos e visitas guiadas para as escolas, além de promover um cineclube, o Cine Pasárgada.
Na faculdade estudei por um semestre a obra desse grande poeta, e quando estive no Recife a primeira coisa que fiz foi visitar a casa de Bandeira na Rua da União, 263, hoje Espaço Pasárgada.
Rua da União, 263
Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritssatd dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois —
Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de Dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincené na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras, mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
A distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longes da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era São José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva se ser menino porque não podia ir ver o fogo
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
... onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora...
... onde se ia pescar escondido
Capiberibe
— Capibaribe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redomoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
— Capibaribe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avó morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô
Rio, 1925
Bandeira transmitia a imagem de homem solitário, frágil e convalescente de uma tuberculose contraída na juventude. Morreu aos 82 anos sem nunca ter se casado. Só os amigos próximos tomaram conhecimento de sua conturbada vida sentimental. Ela foi recheada de aventuras, o que ajuda a explicar uma poesia tão sensual. Durante uma parte da vida, Bandeira amou três mulheres ao mesmo tempo, embora não vivesse com nenhuma delas: a holandesa Frédy Blank, que era casada, a pernambucana Dulce Pontes, que também escrevia poesia, e a mineira Maria de Lourdes de Souza, filha de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Como Bandeira era elegante e discreto, suas mulheres conviviam de forma harmoniosa.
Uma passagem até hoje desconhecida da vida de Bandeira foi sua relação com a alemã Gertrud Bühler, com quem manteve um romance de maturidade na década de 1960. A evidência do affaire repousa bem guardada na cidade medieval de Esslingen, no sudoeste da Alemanha. São 30 cartas de amor que Bandeira escreveu para Gertrud. Elas falam de beijos ardentes, amor e literatura. Gertrud as preservou numa pasta encadernada com o tecido do vestido usado na última noite que os amantes passaram juntos. O material está com a filha de Gertrud, Francisca Janus, de 66 anos, que pretende escrever um romance sobre a vida da mãe.
Fontes:
ebiografia.com
poemassemerros.wordpress.com
passeiweb.com/a_cinza_das_horas
escritas.org.pt
google.com
epoca.globo.com
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